Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]



Eu bem sei

autoria de Bruno C. da Cruz, em 15.09.04

A avó hoje está mais pálida que ontem e já nem fala como ontem. Também já não ri como ontem, nem diz que gosta de mim como ontem.

Mamã, ela vai morrer?

A mamã diz que não, mas eu não sei. Ela também disse que o Vasco, o meu gatinho, ia ficar bom e ele morreu. Não entendo porque é que a mamã me esconde sempre tudo. Será que ainda ninguém lhe disse que as crianças são mais espertas do que se pensa? Já quando o papá ralhava com ela, ela inventava uma histórinha e dizia que estava tudo bem. Mas eu sei muito bem que as histórinhas mentem e que ninguém tem filhos e vive feliz para sempre. A Ritinha quer ter filhos e não pode. E a avó não está a ser feliz para sempre que eu bem sei.

A mamã mente muito que eu sei. Mentiu quando disse que o papá foi viajar, quando na verdade ele foi embora e nunca mais voltou porque já não gosta de nós. Ela diz que ele gosta muito de mim e que também lhe custa muito estar longe de mim. Também diz que onde ele está não me pode ligar, mas ele nunca largava o telemóvel nem às refeições, porque não arranja um tempinho para me ligar agora? A mamã também mente quando diz que está feliz, que eu bem a ouço chorar baixinho todas a noites… E quando vou ter com ela perguntar porque está a chorar ela diz que são dores de cabeça. Mas a minha professora também tem dores de cabeça e não chora. Os adultos são complicados. Ela diz que eu mais tarde vou entender, mas eu não sei. Se não entendo agora como vou entender mais tarde?

A avó já não se levanta há muito tempo, desde que caiu ali no quintal, enquanto eu brincava com o Snoopy, e foi levada para o Hospital. Deixaram-na vir para casa e a mim parece-me que me devolveram a avó errada. A minha avó não era tão pálida, que eu bem sei. E também não gostava de estar muito tempo na cama, às 7 horas ela já andava a pé para dar milho às galinhas e tratar dos coelhos. Como a minha mãe está sempre a mentir-me, eu perguntei à minha tia se a avó ia morrer e ela também disse que não, mas eu não sei.

Ontem a avó ainda falava comigo e hoje já nem olha para mim. E também não é normal esta correria em casa da avó. Está cá muita gente e mandaram-me cá para fora. Se eu espreitar pela janela consigo ver a minha mãe a chorar, a minha tia a chorar e umas senhoras amigas da avó também a chorarem. Se ela não fosse morrer ninguém estava a chorar. Já perguntei ao Snoopy mas ele não aprendeu ainda a falar, eu bem que já lhe ensinei a dizer mamã e avó mas ele parece-me pouco interessado em aprender. Ser criança é uma chatice. Ninguém nos explica as coisas como elas são.

Eu bem sei que a avó vai morrer. E depois vão-me dizer que ela foi para o céu, para junto dos anjinhos e do menino Jesus.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 01:04


1 comentário

Sem imagem de perfil

De Anónimo a 17.09.2004 às 16:20

Já cá tou de novo! Não consigo deixar de te ler, sabes!? Seria mesmo bom que mais "rapazes e raparigas" olhassem a vida através desta forma de estar. Adorei este texto pelos mais diversos motivos. Para além de estar muito bem escrito, mostra algo que considero importante, amar alguém não é protegê-lo das "tragédias" da nossa vida, mas mostrar-lhe com carinho todas as coisas que 'ele' quer ver e o belo que elas encerram... apenas uma das mais de mil formas de o sentir... 'bigada pelo momento! bjssofia
(http://blog.sofiamorgado.net)
(mailto:sofia@universodeluz.net)

Comentar:

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.




Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

  Pesquisar no Blog